Tecnologia ou prisão? Como funcionam os celulares controlados da Coreia do Norte

O mercado de celulares na Coreia do Norte é peculiar, onde a tecnologia se mistura com rígido controle governamental.

Quando se fala em Coreia do Norte, a primeira imagem que vem à mente geralmente envolve isolamento, controle estatal e segredos guardados a sete chaves.

O que poucos sabem é que o país possui, sim, um mercado de celulares em funcionamento, mas o que parece ser um simples smartphone esconde uma realidade tecnológica distorcida: um sistema de vigilância digital tão avançado quanto opressivo, que transforma cada aparelho em uma ferramenta do Estado.

Neste cenário, os smartphones norte-coreanos funcionam muito além da comunicação. Eles são projetados desde a fábrica para monitorar, limitar e censurar.

Neste artigo, exploramos os bastidores dessa tecnologia controlada, desde as fábricas fantasmas até os aplicativos aprovados manualmente, e o que isso revela sobre a vida dentro de um dos regimes mais fechados do planeta.

Um celular que promete voar, mas só na propaganda

Entre os modelos disponíveis no país está o Arirang 151, que conta com câmera, bateria removível e até entrada para teclado externo.

Lançado com alarde pela mídia estatal, ele simboliza a suposta “autossuficiência tecnológica” do país. No entanto, como a maioria dos celulares da Coreia do Norte, esse modelo não está disponível fora de suas fronteiras e, provavelmente, nem foi realmente fabricado lá.

Arirang 151 (Foto: Reprodução)

Na prática, esses aparelhos são versões rebatizadas de celulares chineses de baixo custo, como o Uniscope U1201, importados e adaptados com sistemas operacionais personalizados, criados especificamente para bloquear qualquer possibilidade de comunicação livre ou acesso à internet.

Apesar de hoje existir uma rede móvel local, os telefones celulares só chegaram à Coreia do Norte em 2008. Antes disso, a comunicação era feita quase exclusivamente por linhas fixas, controladas pelo governo.

Uma tentativa anterior, entre 2002 e 2004, foi encerrada de forma abrupta após um atentado contra Kim Jong-il, levando ao cancelamento coletivo do serviço, uma medida típica do regime.

A rede que foi tomada pelo governo

A infraestrutura atual de telefonia, chamada Koryolink, foi inicialmente construída pela empresa egípcia Orascom. Com o tempo, a rede foi expropriada pelo governo, que passou a utilizá-la de acordo com seus próprios critérios.

Hoje, a rede cobre apenas algumas regiões e ferrovias do país. As chamadas são limitadas ao território nacional, não há internet e todos os números possuem o mesmo prefixo.

Em vez de conexão global, os aparelhos acessam a Kwangmyong, uma rede interna com cerca de 5 mil sites censurados e sancionados pelo Estado.

Fábricas de fachada e smartphones rebatizados

Em 2014, imagens de Kim Jong-un visitando uma suposta fábrica de smartphones ganharam destaque na mídia local. O modelo apresentado, AS1201, foi descrito como um produto 100% nacional. No entanto, especialistas identificaram o aparelho como uma cópia de um modelo chinês.

Outros celulares, como o Arirang 171 e o Samtong 8, seguem o mesmo padrão: hardware importado, aparência modernizada e sistema operacional rígido.

A Coreia do Norte, na verdade, não fabrica smartphones do zero; apenas customiza o software com foco em censura e vigilância.

Android modificado: jogos, mas com controle total

Os celulares norte-coreanos rodam versões modificadas do Android, repletas de restrições. Um exemplo analisado por pesquisadores alemães, o Pyongyang 2407, revelou um sistema altamente limitado, sem loja de aplicativos ou conectividade externa.

Curiosamente, esses aparelhos vêm recheados de jogos pré-instalados — como múltiplas versões de Angry Birds, cópias de Candy Crush, um emulador de Super Mario Galaxy e até um app para espantar insetos com sons. O motivo? Não é possível baixar novos aplicativos. A única forma de adquirir um novo app é pessoalmente, em uma loja física de aplicativos.

Aplicativos vendidos em balcões, com censura incluída

Na loja de aplicativos da Coreia do Norte, os apps são instalados diretamente no aparelho a partir de um computador. Esses balcões funcionam dentro de supermercados ou lojas de eletrônicos, e cada aplicativo precisa ser aprovado pelo governo. Se o app não tiver a devida assinatura digital, ele simplesmente não é executado pelo sistema.

Mas não para por aí: todos os arquivos, sejam fotos, músicas ou aplicativos, precisam ter uma assinatura criptografada para funcionar. São dois tipos:

  • Nata Sign: assinatura oficial emitida pelo governo;
  • Self Sign: assinatura gerada automaticamente pelo celular para arquivos criados no próprio dispositivo.

Se um arquivo não tiver uma dessas assinaturas, será apagado automaticamente ao ser acessado.

Red Flag: o espião invisível

Para garantir que o sistema permaneça intacto, os celulares vêm com um programa chamado Red Flag, que roda constantemente em segundo plano.

Ele registra uma captura de tela toda vez que um aplicativo é aberto, armazenando as imagens em uma pasta oculta, acessível apenas por técnicos do governo.

Há ainda um app chamado Trace Viewer, que permite ao usuário apenas ver que está sendo monitorado, mas sem acesso ao conteúdo armazenado.

A presença desse software serve como um lembrete constante de que a privacidade não existe nos celulares norte-coreanos.

Tecnologia feita para controlar, não conectar

Na Coreia do Norte, os celulares não representam liberdade nem inovação. Ao contrário, são instrumentos de controle estatal.

Mesmo com visual moderno e recheados de jogos, os smartphones norte-coreanos são dispositivos projetados para vigiar, censurar e restringir.

Na prática, isso significa que até um simples jogo de Angry Birds pode fazer parte do sistema de vigilância digital mais extremo do mundo.

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